2025 - Os Escravos da Infelicidade
Do Marquês de Sade aos algoritmos: uma reflexão sobre dopamina, tecnologia e resistência
Esse é o segundo texto da linha #MeuTriplex, onde trago temas que estão ocupando mais tempo e espaço na minha cabeça e na de pessoas que gosto e respeito. Mantendo a promessa, a frequência dos textos seguirá regularmente irregular.
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2025 - Os Escravos da Infelicidade
“Estamos todos presos às nossas próprias máquinas masturbatórias”.
Escrita por Anna Lembke, autora do livro “Nação Dopamina”, essa frase genial desencadeou toda a reflexão que culmina nesse texto.
A verdade é que estamos todos buscando o próximo estímulo e a próxima descarga de dopamina: seja ela um scroll, um novo episódio no Netflix, um like ou um pico. No fim das contas viramos versões um pouco mais sofisticadas dos ratos que morrem de exaustão ao se auto-administrar cocaína.
Não me entendam mal: dopamina é essencial – descoberta em 1957, é um neurotransmissor vital para o funcionamento do cérebro. Por muito tempo ela foi chamada de “hormônio do prazer”, mas sua função vai muito além disso: a dopamina está diretamente conectada à nossa motivação, ao nosso sistema de recompensa e ao impulso de buscar experiências que nos façam sentir bem. Quando você come chocolate, ouve sua música favorita, aprende algo novo ou recebe uma curtida nas redes sociais, é a dopamina que dispara, criando aquela sensação de satisfação e euforia.
Até aqui, tudo certo.
Mas o que acontece quando transformamos nosso cotidiano em uma busca incessante por picos recorrentes - e cada vez mais altos - de dopamina?
Você até pode se achar o Alecrim Dourado, imune à essa busca incessante e diária de dopamina. Mas se olhar de pertinho, estamos no mesmo balaio. Somos todos viciados. Então muito cuidado quando for criticar quem joga Tigrinho com o dinheiro do Bolsa-Família.
Não podemos colocar essa busca incessante por prazer (e fuga do sofrimento) só na conta das redes sociais — ela tem raízes filosóficas que remontam ao século XVIII. Foi o Marquês de Sade (1740-1814), aristocrata francês e filósofo radical, quem levou às últimas consequências a lógica do hedonismo que permeia nossa sociedade contemporânea. Aliás, é dele que vem a palavra "sadismo" — não apenas como referência às práticas sexuais extremas que praticava, mas como expressão de uma filosofia que colocava o prazer individual acima de qualquer limite moral ou social.
Sade defendia que a natureza humana é fundamentalmente amoral e que nossa única obrigação é maximizar nossos prazeres, independentemente das consequências para outros. Em suas obras como "Os 120 Dias de Sodoma" e "Justine", ele construiu um sistema filosófico onde o prazer — especialmente o prazer obtido através do poder e da transgressão — era a única lei válida.
O que torna essa conexão ainda mais perturbadora é como a tecnologia contemporânea democratizou e sofisticou os mesmos princípios sadeianos. Enquanto Sade precisava criar cenários elaborados para suas fantasias de poder e controle, hoje temos algoritmos que funcionam como "soberanos libertinos" digitais, organizando nossa experiência em torno da maximização do prazer e do engajamento. As redes sociais, o Jogo do Tigrinho e as plataformas de streaming operam segundo a mesma lógica que Sade propunha: a busca por estímulos cada vez mais intensos, a rejeição do tédio e da contemplação, e a transformação de desejos em necessidades urgentes.
Tanto no excelente episódio “Controlling Your Dopamine For Motivation, Focus & Satisfaction” do podcast Hubberman Lab quanto em “Nação Dopamina”, um ponto CRUCIAL sobre isso tudo é endereçado: o equilíbrio entre prazer e sofrimento.
No cérebro, prazer e sofrimento são processos em áreas sobrepostas. Funcionam como uma balança: quando um sobe, o outro desce. O processo de homeostase é a tendência de qualquer sistema vivo a manter-se equilibrado. De organismos unicelulares aos animais mais complexos, todo mundo está buscando o tal do equilíbrio que o seu terapeuta tanto te pede. Mas como explica a Dra. Nora Volkow no artigo Dopamine in Drug Abuse and Addiction, o uso prolongado de substâncias de alta dopamina acaba levando a um estado de déficit de dopamina – porque o corpo se acostuma com a alta dopamina. Confuso? Vou tentar ajudar de uma forma bem ilustrativa e não-fidedigna com níveis biológicos reais:
Imagine que o nosso corpo tem um nível 100 de dopamina. Quando você faz algo que aumenta o estímulo desse neurotransmissor, ele vai para 120. Maravilha. Sensação de felicidade. Prazer. Empolgação. Por causa da homeostase o seu corpo vai puxar o nível de dopamina de volta para o 100. Pouco tempo depois você foi lá e faz de novo. Agora a dopamina foi para 118 mas você segue empolgado. Mas quando seu corpo tenta normalizar, a dopamina agora desce até 97. Você voltou ao equilíbrio mas um pouquinho down. Nada preocupante. Foi lá e fez de novo: dopamina agora bateu 117 e a homeostase puxou ela para 95… Equilibrado mas tristinho.
Repita esse passo dezenas de vezes por dia (semana/meses/anos) e imagine o que acontece.
Fonte: Vikas Goel
Quando o nível basal de dopamina fica muito abaixo do 100, sabe o que acontece?
Falta de motivação.
Fadiga.
Dificuldades cognitivas.
Alterações no sono.
Redução de libido.
A lista é longa…
Estamos tristes porque estamos tentando ser felizes demais.
“Ah, Leo. Você está exagerando. Só fui ver quem assistiu os meus Stories no Instagram.”
Como te falei, Alecrim Dourado, o buraco é fundo. O historiador David Courtwright até criou um termo para isso: CAPITALISMO LÍMBICO – uma economia inteira construída em torno da nossa busca por dopamina. Netflix, YouTube, Instagram, TikTok, jogos mobile... todos esses serviços foram meticulosamente projetados para nos manter engajados pelo maior tempo possível. Fique à vontade para trocar “engajados” por “viciados” na frase anterior.
O capitalismo límbico representa uma “evolução” sistêmica: saímos de uma economia que vendia produtos viciantes (álcool, tabaco) para uma que industrializa diretamente nossos sistemas neurológicos. Cada setor econômico se especializou na captura dopamínica - big techs monopolizam atenção via algoritmos, entretenimento transforma conteúdo em máquinas caça-níquel e fintechs gamificam investimentos. Não é sobre escolhas individuais, mas uma reconfiguração estrutural onde o excesso de capital migrou sistematicamente para qualquer atividade capaz de monetizar nossa atenção.
Para referência, algumas atividades e o seu impacto no estímulo da Dopamina:
Chocolate libera 50% mais dopamina que atividades normais
Sexo: 100% mais
Nicotina: 150% mais
Cocaína: 250% mais
Anfetaminas: 1.000% a mais
Fonte: Livro Nação Dopamina
E quanto maior o pico, maior a queda.
No caso das redes sociais, o grande disparador de Dopamina é a “Novidade". O feed infinito transformou nossa experiência de “conexão” em uma eterna roda de hamsters de: “Preciso ver o próximo post. Está a um scroll de distância. Vai ser rapidinho”. A antecipação por si só já gera liberação de dopamina! E sabe o que é mais doido? Às vezes é mais prazeroso esperar do que conseguir o que queríamos.
Quando o baseline de dopamina no cérebro cai, na prática vamos ficando menos felizes com a condição normal da vida. O que nos resta então? Continuar procurando estímulos para que a dopamina volte a patamares mais altos.
Estamos tristes porque estamos tentando ser felizes demais.
Existe um caminho alternativo que pode funcionar: sofrer. Assim como a dor é o preço que pagamos pelo prazer, o prazer também é a nossa recompensa pela dor. Eu acredito que procurar o sofrimento e fazê-lo parte da nossa vida é um caminho para essa “desintoxicação dopamínica” (termo que acabei de inventar).
Mas o que acontece quando temos uma sociedade inteira voltada para o hedonismo e para a fuga do sofrimento?
Não podemos negar que vivemos em uma cultura hedonista – aquela que valoriza o prazer e a satisfação imediata (oi, Marquês de Sade). E não, Alecrim Dourado. Você não é um ser mais elevado por suas convicções políticas ou causas que defende.
Em “Nação Dopamina”, um dos pacientes de Anne Lembke diz com todas as letras: "Era mais fácil tomar o comprimido do que sentir dor". Poderia ser alguém que trabalha no mercado financeiro aqui na Av. Faria Lima em São Paulo. Pode ser algum publicitário virando noite na agência em uma concorrência. Pode ser alguém que você conhece. Pode ser você. Criamos gerações que não sabem tolerar o sofrimento.
Se você pesquisar por “Jejum de Dopamina” no Google vai receber milhares de artigos, vídeos e posts ensinando (e até vendendo) a fórmula mágica para reestabelecer os seus padrões normais de Dopamina. Fique à vontade para testar. Não vou te prometer nada nem sugerir nenhum caminho. Mas funcionou tanto para o Diego Diham que ele fez até música (de qualidade questionável, mas valeu o esforço): Jejum de Dopamina - YouTube Music
Paternidade entra em jogo:
Além de trabalhar com inovação e tecnologia também sou pai de um menino de 5 anos. A paternidade me traz um prisma que dá ainda mais peso ao assunto.
Papais e mamães: sabiam que as mesmas vias neurais ativadas por drogas são estimuladas pelo uso de telas?
Pois é. A diferença é que as telas são socialmente aceitas. E os dados sobre vício em telas entre crianças e adolescentes são alarmantes: aumento de 7,7 vezes na probabilidade de desenvolver TDAH para crianças com mais de 2 horas diárias de tela; 49% de aumento no risco de atraso na fala a cada 30 minutos extras de exposição, adelgaçamento prematuro do córtex cerebral em crianças com mais de 7 horas diárias, além de problemas de sono, ansiedade, depressão e redução na capacidade de concentração e leitura.
Eu estou dizendo que as crianças não deveriam interagir com nenhuma tela? Jamais! Que moral eu tenho para pedir isso quando meu filho me vê trabalhando na frente do computador o dia inteiro, interagindo com os meus amigos pelo celular ou assistindo um vídeo no Youtube na TV da sala? Além disso, as telas podem (e devem) ser nossas aliadas. O mais importante é saber usar.
Eu fui - e sou - contra a proibição do uso de celulares em salas de aula votada recentemente pelo Governo de São Paulo. Isso não significa que eu não entenda porque ela foi aprovada. A minha questão é que ela não pode ter um fim em si mesmo. Proibir de forma pura e simples (mesmo que os celulares possam ser utilizados em momentos pedagógicos) sem nenhuma iniciativa robusta e integrada com a sociedade (pais, mães, responsáveis e demais atores) é tapar o sol com a peneira. É preciso que exista uma política robusta e AMPLA de letramento digital para que as pessoas entendam como não se tornarem escravas do capitalismo límbico. Difícil mas essencial.
(Eu nem vou entrar no tema de Letramento Digital sobre Inteligência Artificial porque esse é outro bicho)
Aqui em casa temos alguns combinados com meu filho no quesito "Telas”: Desenho só na "Sexta de Cinema” com a família toda e 1 hora durante o fim de semana. Quer trocar a música do Spotify? Só pode mudar 2x por dia. Depois disso tem que ouvir o que a playlist colocar. Quer trocar o desenho do Disney Plus? Só pode trocar 1x por dia. Estou fazendo o certo? Não sei. Um dia ele vai perceber que dá para trocar várias vezes? Vai. Mas por enquanto estou tentando fazer o que dá com o repertório que tenho.
Só peço atenção. Reflexão. Conexão com as crianças. Disposição para fazer parte (de verdade) da vida delas. Porque quando a vida ao nosso redor é chata e sem conexão humana, as telas viram mais do que um passatempo.
Quero que tecnologia faça parte da vida do meu filho. Mas a minha busca (para mim e para ele) é pela tal da homeostase.
E para terminar, provocações!
E como sempre, termino meus textos do TRIPLEX com algumas provocações:
Conseguiremos distinguir entre prazer genuíno e manipulação dopamínica?
O que estamos perdendo (ou ganhando) ao trocar experiências reais por estímulos digitais?
Que tipo de liderança conseguirá guiar nossa sociedade para longe do vício digital?
Estamos preparados para uma sociedade onde a paciência se tornou superpoder?
Faz sentido pensarmos que a lentidão deve ser celebrada? (Pesquisem sobre Joy Of Missing Out)
O que acontece com a criatividade quando eliminamos o ócio produtivo?
Quais profissões (não) sobreviverão em um mundo de atenção fragmentada?
Outros posts que você pode gostar:
O fim do senso crítico?
A partir de hoje começo uma linha de escrita mais focada nos temas que estão ocupando mais tempo e espaço na minha cabeça e na de pessoas que gosto e respeito. Daí o nome #MeuTriplex. A frequência dos textos seguirá regularmente irregular. Espero que gostem dessa nova fase!
Do PDF ao Pensamento Digital
Vamos conversar sobre o que você achou desse texto? Estou lá no LinkedIn querendo te ouvir!
Mais uma vez, um texto muito massa, com bastantes reflexões.
Parabéns, Leo!
Ah... e não sei se "Estamos preparados para uma sociedade onde a paciência se tornou superpoder", mas paciência se tornou de fato, um superpoder. E, como na escola dos X-Men, acho que tá bem difícil dominar essa qualidade hahaha.
Um abraço!
Mesquita.